Folha de S. Paulo
O Brasil vem se preparando para adotar uma solução que pretende trazer mais segurança aos medicamentos consumidos no país, mas está correndo sério risco de implementá-la erroneamente e prejudicar de forma inequívoca aqueles a quem se busca proteger, justamente os usuários de medicamentos.
Aprovada em 2009, a lei nº 11.903 prevê que cada medicamento produzido e comercializado no Brasil seja rastreável, ou seja, que contenha uma forma de ser identificado individualmente e acompanhado desde sua produção até o consumidor final, inclusive com informações sobre o médico que o prescreveu.
Ocorre que, na pressa de lançar a novidade, estamos cometendo dois graves erros. O primeiro deles é o tempo de implantação. Enquanto na Europa e nos Estados Unidos estabeleceu-se um prazo de dez anos, no Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) impôs um limite de apenas três.
Não precisamos de muita reflexão para entender que a condução deste trabalho requer o tempo necessário para a implementação do sistema de forma segura e eficiente.
Para que se tenha uma noção do tamanho do problema, mais de 3 mil linhas de produção terão de ser modificadas em tempo recorde, inclusive as dos laboratórios públicos, cuja escassez de recursos é conhecida. Em vez de lotes, cerca de 4 bilhões de unidades de medicamentos passarão a ser controladas individualmente, dia após dia.
Além das linhas de produção, todos os sistemas de abastecimento, compra e venda de medicamentos terão de ser modificados. São mais de 180 mil estabelecimentos – entre farmácias, hospitais públicos e postos de saúde– que terão de adquirir novas tecnologias de captura, armazenamento e transmissão de dados, pois a lei determina que a rastreabilidade se estenda até o ponto de dispensação, seja público ou privado.
Realizar uma mudança dessa envergadura às pressas, tratando-a de forma leviana, é claramente uma temeridade. Deve-se, portanto, levar em conta a complexidade da operação logística que a medida irá demandar, pois o risco de faltar medicamentos nas prateleiras é iminente.
Mas há um erro ainda mais grave na implantação da rastreabilidade de medicamentos: a forma como o Brasil pretende fazê-la. Os que se atentaram aos detalhes observaram que a lei apenas determinou o monitoramento, sem fazer qualquer menção à forma como isso seria realizado.
Eis que, após quatro anos, em 2013, a Anvisa regulamentou a medida, mas delegou aos fabricantes a responsabilidade de concentrar as informações relativas aos medicamentos. Sendo assim, atacado e varejo são obrigados a devolver as informações de toda e qualquer movimentação dos medicamentos às indústrias, que montarão um banco de dados com todos os dados do mercado. Isto é um verdadeiro absurdo, um atentado à privacidade da informação prevista na Constituição.
A recomendação para a criação do sistema de rastreabilidade veio da CPI de Medicamentos, de 1999, que investigou o suposto cartel das indústrias farmacêuticas, e o alijamento da concorrência por meio do uso da informação e da manipulação do mercado.
Dar aos fabricantes, de modo oficial, as informações dos médicos, pacientes, do atacado e do próprio varejo é um claro atentado à livre concorrência, e vai totalmente contra o que a CPI dos Medicamentos quis evitar ao recomendar a criação da lei.
Ora, é simples entender o motivo: pelo fato de exercerem influência sobre a prescrição médica e terem o poder comercial, ao identificarem onde e quando foi vendido cada medicamento, os fabricantes poderão alijar empresas, manipular preços, dominar a concorrência.
Na prática, a lei que visa a proteger o usuário vai prejudicá-lo de vez, principalmente nos dias de hoje, em que o mundo discute a proteção à individualidade dos cidadãos, das empresas e dos governos. Ao tomar essa decisão, o país trilha por um caminho obscuro de desrespeito à sociedade.
Na Argentina e Turquia, que já implantaram o sistema, e nos Estados Unidos e na União Europeia, que vão implantá-lo nos próximos dez anos, quem gerencia a informação? O governo, é claro, e não os fabricantes.
Um projeto de lei no Senado pretende dar um freio de arrumação neste estado de coisas, propondo mais prazo e uma alternativa para garantir que as informações fiquem protegidas. Ante a complexidade do tema, a própria Anvisa também está reestudando o assunto internamente. A sociedade tem de ser envolvida neste debate.
A hora da discussão é agora. Deixar para depois poderá ser tarde demais.
SÉRGIO MENA BARRETO, bacharel em administração, é presidente-executivo da Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias – Abrafarma
O Brasil vem se preparando para adotar uma solução que pretende trazer mais segurança aos medicamentos consumidos no país, mas está correndo sério risco de implementá-la erroneamente e prejudicar de forma inequívoca aqueles a quem se busca proteger, justamente os usuários de medicamentos.
Aprovada em 2009, a lei nº 11.903 prevê que cada medicamento produzido e comercializado no Brasil seja rastreável, ou seja, que contenha uma forma de ser identificado individualmente e acompanhado desde sua produção até o consumidor final, inclusive com informações sobre o médico que o prescreveu.
Ocorre que, na pressa de lançar a novidade, estamos cometendo dois graves erros. O primeiro deles é o tempo de implantação. Enquanto na Europa e nos Estados Unidos estabeleceu-se um prazo de dez anos, no Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) impôs um limite de apenas três.
Não precisamos de muita reflexão para entender que a condução deste trabalho requer o tempo necessário para a implementação do sistema de forma segura e eficiente.
Para que se tenha uma noção do tamanho do problema, mais de 3 mil linhas de produção terão de ser modificadas em tempo recorde, inclusive as dos laboratórios públicos, cuja escassez de recursos é conhecida. Em vez de lotes, cerca de 4 bilhões de unidades de medicamentos passarão a ser controladas individualmente, dia após dia.
Além das linhas de produção, todos os sistemas de abastecimento, compra e venda de medicamentos terão de ser modificados. São mais de 180 mil estabelecimentos – entre farmácias, hospitais públicos e postos de saúde– que terão de adquirir novas tecnologias de captura, armazenamento e transmissão de dados, pois a lei determina que a rastreabilidade se estenda até o ponto de dispensação, seja público ou privado.
Realizar uma mudança dessa envergadura às pressas, tratando-a de forma leviana, é claramente uma temeridade. Deve-se, portanto, levar em conta a complexidade da operação logística que a medida irá demandar, pois o risco de faltar medicamentos nas prateleiras é iminente.
Mas há um erro ainda mais grave na implantação da rastreabilidade de medicamentos: a forma como o Brasil pretende fazê-la. Os que se atentaram aos detalhes observaram que a lei apenas determinou o monitoramento, sem fazer qualquer menção à forma como isso seria realizado.
Eis que, após quatro anos, em 2013, a Anvisa regulamentou a medida, mas delegou aos fabricantes a responsabilidade de concentrar as informações relativas aos medicamentos. Sendo assim, atacado e varejo são obrigados a devolver as informações de toda e qualquer movimentação dos medicamentos às indústrias, que montarão um banco de dados com todos os dados do mercado. Isto é um verdadeiro absurdo, um atentado à privacidade da informação prevista na Constituição.
A recomendação para a criação do sistema de rastreabilidade veio da CPI de Medicamentos, de 1999, que investigou o suposto cartel das indústrias farmacêuticas, e o alijamento da concorrência por meio do uso da informação e da manipulação do mercado.
Dar aos fabricantes, de modo oficial, as informações dos médicos, pacientes, do atacado e do próprio varejo é um claro atentado à livre concorrência, e vai totalmente contra o que a CPI dos Medicamentos quis evitar ao recomendar a criação da lei.
Ora, é simples entender o motivo: pelo fato de exercerem influência sobre a prescrição médica e terem o poder comercial, ao identificarem onde e quando foi vendido cada medicamento, os fabricantes poderão alijar empresas, manipular preços, dominar a concorrência.
Na prática, a lei que visa a proteger o usuário vai prejudicá-lo de vez, principalmente nos dias de hoje, em que o mundo discute a proteção à individualidade dos cidadãos, das empresas e dos governos. Ao tomar essa decisão, o país trilha por um caminho obscuro de desrespeito à sociedade.
Na Argentina e Turquia, que já implantaram o sistema, e nos Estados Unidos e na União Europeia, que vão implantá-lo nos próximos dez anos, quem gerencia a informação? O governo, é claro, e não os fabricantes.
Um projeto de lei no Senado pretende dar um freio de arrumação neste estado de coisas, propondo mais prazo e uma alternativa para garantir que as informações fiquem protegidas. Ante a complexidade do tema, a própria Anvisa também está reestudando o assunto internamente. A sociedade tem de ser envolvida neste debate.
A hora da discussão é agora. Deixar para depois poderá ser tarde demais.
SÉRGIO MENA BARRETO, bacharel em administração, é presidente-executivo da Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias – Abrafarma
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