Reconhecida pela sua eficácia,
a vacina contra a febre amarela é produzida com a mesma tecnologia desde 1937:
vírus atenuados são inoculados em embriões de galinha e, após se multiplicarem,
são usados no imunizante. O processo de replicação viral permaneceu uma
incógnita durante décadas. Foi investigando essa etapa que um grupo liderado
por cientistas do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) descobriu informações
que podem ajudar a aprimorar o imunizante no futuro. Em um estudo publicado na
revista científica internacionalPlos Neglected Tropical Diseases, os
pesquisadores descrevem, pela primeira vez, quais tecidos e células dos
embriões de galinha são responsáveis pela replicação do vírus. As descobertas
podem contribuir para o aperfeiçoamento do método de fabricação da vacina, o
que poderia substituir o uso de embriões de galinha por um sistema de cultura
de células. Desta forma, a imunização poderia deixar de ser contraindicada para
as pessoas com alergia grave a proteínas de ovo. Além disso, a mudança também
representaria um avanço ético no que se refere ao uso de animais, na medida em
que permitiria reduzir o emprego de embriões de galinha no processo de
fabricação do imunizante.
Primeiro autor do artigo, o
biólogo Pedro Paulo de Abreu Manso, do Laboratório de Patologia do IOC/Fiocruz,
diz que os resultados são surpreendentes. “Em pacientes, o fígado é um dos
principais órgãos acometidos nos casos de febre amarela grave. No entanto, nos
embriões de galinha, este órgão não é afetado. Por outro lado, neste trabalho
observamos que os vírus são produzidos principalmente nas células musculares
esqueléticas, o que nunca tinha sido mostrado antes”, comenta o pesquisador. Na
medida em que identifica os tecidos responsáveis pela replicação das partículas
virais nos embriões de galinha, o artigo aponta um possível caminho para a
produção da vacina em cultura de células. Segundo os cientistas, tentativas
anteriores neste sentido não obtiveram sucesso na produção do imunizante.
“Ainda são necessários muitos testes, mas utilizar células musculares, que são
as principais células envolvidas na produção do vírus in vivo, pode aumentar as
chances de sucesso na produção da vacina em sistema de cultura”, avalia Pedro
Paulo.
Refutações e confirmações - Os
resultados inesperados da pesquisa levaram os cientistas a questionar alguns
mecanismos da doença. Por exemplo, a presença dos vírus nas células musculares
poderia justificar um dos sintomas iniciais do agravo: a dor muscular, que
geralmente é atribuída à resposta imune do organismo contra a infecção. “Assim
como ocorre nos embriões de galinha, os patógenos podem afetar diretamente os
músculos dos pacientes. Isso nunca foi investigado na febre amarela, mas já foi
mostrado na infecção por chikungunya, que é causada por um vírus de uma família
próxima”, afirma Pedro Paulo. Da mesma forma, a evolução da doença no fígado
pode ter explicações diferentes das conhecidas até agora. Segundo as teorias
atuais, células especializadas chamadas de células de Kupffer exerceriam um
papel protetor, retardando a infecção das células mais importantes do órgão,
conhecidas como hepatócitos. O estudo aponta justamente o contrário. Como no
estudo foi usada uma fase do desenvolvimento em que os embriões de galinha
ainda não possuem células de Kupffer e, mesmo assim, o fígado não foi afetado
pelo vírus, os pesquisadores suspeitam que estas células possam atuar como um
facilitador da propagação do patógeno no fígado.
Ao mesmo tempo em que alguns
conhecimentos atuais foram questionados, outros foram reforçados. A produção de
imagens inéditas confirmou a localização exata dos vírus da febre amarela nas
células dos embriões de galinha. Usando uma técnica de microscopia de
super-resolução, os pesquisadores mostram que as partículas virais são
encontradas em uma organela celular chamada de retículo endoplasmático e em
compartimentos conhecidos como vesículas de exocitose. De acordo com Pedro
Paulo, as imagens ajudam a consolidar o conhecimento já existente sobre o ciclo
da infecção dentro das células.
Conhecimento de interesse para
o Brasil - O trabalho foi desenvolvido por pesquisadores dos Laboratórios de
Patologia e de Biologia Molecular de Flavivírus do IOC/Fiocruz com a
colaboração do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz).
Para os autores, encontrar formas de melhorar a vacina contra a febre amarela
pode ser ainda mais importante no futuro. No ano passado, uma tecnologia criada
por cientistas do IOC/Fiocruz e de Bio-Manguinhos/Fiocruz que permite usar este
imunizante como base para elaborar vacinas contra diversas doenças recebeu a
patente nos Estados Unidos. Atualmente, a metodologia é aplicada na busca de
possíveis vacinas contra a Aids e a doença de Chagas. Além disso, as
descobertas recentes podem ajudar a aperfeiçoar um produto de destaque no
portfólio brasileiro de imunizantes: responsável pela produção da vacina contra
a febre amarela desde 1937, Bio-Manguinhos/Fiocruz é o maior fabricante mundial
e o único da América Latina certificado pela Organização Mundial da Saúde
(OMS).
O estudo da febre amarela
também está na origem do Laboratório de Patologia do IOC/Fiocruz. A unidade é
responsável pela Coleção de Febre Amarela, que reúne amostras de 498 mil casos
da doença. Conservadas em formol, em blocos de parafina e em cortes
histológicos corados em lâminas, as amostras de fígado de pacientes que
morreram devido à infecção foram coletadas entre 1930 e 1970. Entre diversas
contribuições para a ciência e a saúde, o estudo do material ajudou no
mapeamento dos casos e na erradicação da forma urbana da febre amarela no
Brasil alcançada entre 1933 e 1934.
Uma doença complexa - Por
possuir um ciclo silvestre, a febre amarela é uma doença de difícil eliminação.
Em áreas de floresta, mosquitos Haemogogus contraem o vírus causador da
infecção ao sugar o sangue de macacos doentes e podem transmitir o patógeno
para viajantes e pessoas que vivem nas imediações. No Brasil, a forma urbana do
agravo foi eliminada em 1942, após epidemias que deixaram milhares de mortos no
século XIX e no começo do século XX. No entanto, o risco de reintrodução é uma
preocupação constante porque mosquitos do gênero Aedes – que já transmitem
dengue, chikungunya e zika – também têm potencial de propagar a febre amarela.
Principal forma de prevenção,
a vacina contra a doença faz parte do calendário nacional de imunizações em
todas as áreas com risco de transmissão, o que inclui as regiões Norte e
Centro-Oeste, além de trechos do Nordeste, Sul e Sudeste. Nestes locais, a
primeira dose deve ser aplicada aos noves meses e a segunda, aos 4 anos. Quem
nunca foi imunizado e pretende viajar para áreas com transmissão da doença deve
consultar o site da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para
verificar a necessidade de imunização, que deve ser feita dez dias antes da
data da viagem para garantir a proteção.
A maioria das pessoas que
contrai febre amarela se recupera após três ou quatro dias, mas 15% dos
pacientes desenvolvem formas graves, que podem levar à morte em 50% dos casos.
Segundo o Ministério da Saúde, de 1999 a 2013, houve 405 registros de febre
amarela grave no Brasil, com 182 óbitos. Os principais sintomas da infecção são
febre alta, calafrios, dor de cabeça e dor muscular. Além disso, podem ocorrer
náuseas, vômitos e diarreia. Nos casos graves, o fígado e os rins são afetados.
Os pacientes apresentam olhos amarelados e sinais hemorrágicos, como
sangramentos do nariz e gengivas. Uma vez que os sintomas iniciais da infecção
se parecem com os de várias outras doenças, é importante que os pacientes
relatem aos médicos seus históricos de viagem. Não existe tratamento específico
para a febre amarela, mas os pacientes diagnosticados recebem terapia para
controlar a desidratação e outros sintomas, como febre e dor.
Fonte: Maíra Menezes
(IOC/Fiocruz)
0 comentários:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.